Fotos: Arquivo do projeto Encontro de Saberes
A disciplina de “Tópicos Especiais I: Encontro de Saberes: artes e ofícios dos saberes tradicionais” está disponível para matrícula dos acadêmicos da Universidade Federal de Roraima no semestre 2023.2. A disciplina é ligada ao curso de Antropologia, não possui pré-requisitos e pode ser cursada por acadêmicos de qualquer curso da instituição. A segunda fase de matrículas iniciou nesta quinta (20) e segue até o dia 25 de julho. O cadastro no curso pode ser realizado via Sistema SIGAA e os acadêmicos podem pesquisar pela componente curricular usando o código: CAN36.
Segundo o professor Pablo Albernaz, um dos idealizadores do projeto Encontro de Saberes dentro da UFRR, o grande diferencial da disciplina é a oportunidade que os acadêmicos da UFRR terão de aprender com mestres indígenas, afrodescendentes e de saberes populares, em conjunto com os professores da instituição.
“Dessa maneira é possível criar um espaço de diálogo simétrico e intercultural com os saberes acadêmicos. Com essa perspectiva pluriepistêmica, o curso tem por objetivo possibilitar um espaço de comunicação com modos de conhecimento historicamente excluídos do sistema educacional formal, através da inserção dos sábios das culturas tradicionais na docência, bem como da integração de seus conhecimentos aos currículos das disciplinas universitárias regulares”, explicou Albernaz.
De acordo com o professor Pablo Albernaz, a ideia de juntar os saberes tradicionais aos acadêmicos dentro da UFRR, surgiu ainda em 2015, num evento no qual mestres e professores universitários participaram. “O mestre Tátà Bòkúlê fez uma provocação durante a fala dele no evento ressaltando que eles, da comunidade de terreiro, não queriam ser chamados apenas no período das comemorações do Dia da Consciência Negra e nem que os pesquisadores só fossem as suas casas para fazer pesquisa e depois retornassem para a Universidade. Eles também queriam ocupar esse espaço dentro da academia”, contou.
Segundo ele, a provocação feita pelo mestre Tátà Bòkúlê dialogava com outra iniciativa que já vinha sendo adotada por várias universidades pelo Brasil: o projeto Encontro de Saberes.
O projeto foi desenvolvido, inicialmente, pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa e iniciado na Universidade de Brasília em 2010 como um movimento de inclusão étnica e racial e de descolonização das bases eurocêntricas dos currículos das universidades.
“O foco central do Encontro de Saberes é trazer os mestres e mestras dos saberes das comunidades tradicionais, indígenas, afro-brasileiras, quilombolas, entre outras, para que atuem como docentes nas universidades, mesmo quando não possuam escolaridade alguma. Na medida em que os mestres e mestras são também pessoas negras e indígenas, sua presença no lugar de autoridade acadêmica, porém com uma formação intelectual com base em epistemes não eurocêntricas, contribui para o enfrentamento da dupla face do racismo constitutivo das nossas instituições de ensino superior e pesquisa desde sua fundação: o racismo étnico e fenotípico e o racismo epistêmico”, destacou Albernaz.
A primeira oferta do Encontro de Saberes ocorreu em 2010 no curso de graduação em antropologia da UnB e contou com mestres e mestras dos saberes tradicionais de todas as regiões do Brasil. Posteriormente a disciplina foi oferecida na Pontificia Universidad Javeriana, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Estadual do Ceará (UECE), Universidade do Sul da Bahia (UFSB), Universidade Federal do Cariri (UFCA), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Na UFRR, o projeto Encontro de Saberes começou a ser pensado a partir do seminário “Antropologia e Encontro de Saberes: Diálogos Interepistêmicos”, que ocorreu em outubro de 2017 e contou com a presença de diversos professores e pesquisadores ligados ao projeto em outras universidades, bem como mestres e mestras de saberes tradicionais.
“Tivemos a presença do professor José Jorge de Carvalho, que idealizou inicialmente o projeto na UNB, e também do professor José Carlos dos Anjos, UFRGS, ambos tiveram uma atuação muito proeminente quando as cotas se tornaram um debate nacional nas universidades brasileiras”, afirmou. “Também tivemos a presença do Mestre Nego Bispo, que é um intelectual quilombola do Piauí, que tem uma produção literária muito interessante, discutindo saberes que ele chama de contracoloniais”.
O Seminário também teve a presença de um grupo de cantores da etnia Ingaricó, integrantes do Movimento Negro e também do movimento indígena de Roraima, além do sábio Ye’kwana Vicente Castro Ihuruana.
O fruto deste evento foi colhido em 2019 quando a disciplina “Tópicos Especiais I: Encontro de Saberes: artes e ofícios dos saberes tradicionais” foi ofertada pela primeira vez na UFRR, para os acadêmicos do curso de Antropologia. A disciplina foi dividida em 5 módulos: “Artes e ofícios”, ministrado por Vera de Oxossi (Vera Aparecida de Souza), “Plantas e Espíritos”, ministrado por Mãe Yatylyssa (Maria da Graças Pereira Bahia), “Artes da Cura”, módulo comandado pelo Mestre Tátà Bokùlê (Carlos Alberto de Souza Fournier Filho),”Sociedades e Cosmovisões”, ministrada por Mãe Michele de Oxum (Jaqueline Michele Larre Guterres) e “Linguagens e Narrativas”, módulo que contou com a participação do sábio Ye’kwana Vicente Castro Ihuruana.
Na segunda oferta, em 2020, durante a Pandemia de Covid-19, o curso teve por formato rodas virtuais de conversas com mestres, acadêmicos indígenas e afrodescendentes, e pesquisadores vinculados à rede Encontro de Saberes. A disciplina contou com a participação de Ibã Huni Kuin, Jaime Diakara Desana, João Paulo Tukano, Viviane Ye’kwana, Célia Xakriabá, Davi Kopenawa Yanomami, Mãe Michele de Oxum, Mestre Cica de Oyó, Yashodan Abya Yala, Tátà Bòkúlé e Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, dentre outros.
O professor Pablo Albernaz afirmou que a limitação causada pela necessidade de que o curso fosse feito virtual e não presencialmente, como ocorreu em 2019, na verdade, permitiu que a disciplina, que naquela altura também era um projeto de extensão da UFRR, se expandisse. “Como o curso aconteceria num ambiente virtual, isso acabou gerando uma grande procura por parte de alunos de todas as regiões do Brasil e até mesmo de fora do país”, destacou.
Neste semestre 2023.2, a disciplina será novamente ofertada na UFRR, após a reitoria criar uma comissão com o objetivo de institucionalizar o projeto. Nessa nova oferta, o curso receberá diversos mestres e mestras dos saberes tradicionais em Roraima, com destaque para as presenças de Davi Kopenawa Yanomami e Tátà Bòkúlê.
O professor Pablo Albernaz ainda reforçou a importância da característica pluriesptêmica da disciplina ao reforçar a importância do diálogo entre os saberes tradicionais e o conhecimento acadêmico.
“O projeto Encontro de Saberes entende que não faz sentido apenas trazer os alunos negros e indígenas para as universidades e após isso a academia continuar a reproduzir o conhecimento europeu. Isso nada mais é simplesmente que uma reificação do racismo. A ideia do projeto é trazer para as universidades uma base pluriepistemológica que inclua esses saberes tradicionais (…) Essas cosmologias, esses saberes, são baseados numa ética do cuidado, do resguardo com o corpo. São conhecimentos que estão tão próximos de nós, mas que ao mesmo tempo a nossa formação educacional foi privando”, explicou.
Albernaz garantiu ainda que os saberes tradicionais são capazes de dialogar com qualquer área do conhecimento, sendo assim, cursar a disciplina seria uma experiência válida para acadêmicos de qualquer curso de graduação da UFRR.
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